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Sob o signo do insólito: fragmentação e loucura em “El Hotel”

Karina Lima Sales. Doutoranda em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. Professora auxiliar na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, campus X, Teixeira de Freitas - BA. Email: kalisalima@hotmail.com

A escrita literária pode ser compreendida, entre outras variáveis, como uma possibilidade de autoanálise. Orhan Pamuk define o escritor como alguém que passa anos tentando descobrir um segundo ser dentro de si e o mundo que o faz ser quem é. Para Pamuk, escrever “é transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma” (PAMUK, 2007, p. 13)[1]. A condição do narrador-escritor do romance El Hotel pode ser analisada sob esse prisma.

Publicado em 2015 pela Editora independente argentina Final Abierto, El Hotel, terceiro romance do escritor, editor e crítico argentino José Henrique surpreende e envolve o leitor desdeas primeiras páginas, quando somos apresentados a um narrador em primeira pessoa, ponto de vista que se mantém por todo o livro. Um homem não nomeado, desnudo e preso em um quarto sem janelas, sente-se desorientado e sem saída, sem entender o que ocorre: “Es muy difícil salir de un lugar así” (p. 11). Como em uma mudança de cena, marcada também por uma alternância de fonte tipográfica, na sequência o leitor se depara com um episódio que se assemelha ao anterior, entretanto,em um tempo diferente e assim segue a narrativa.


Ocenário da história é um hotel, configuração topográfica de um malestar geral que toma a todos, uma vez que se pode ler o hotel como o próprio mundo, dado que estar nessa sociedade caóticaé uma loucura. Recheado de quartos, corredoreseescadarias pelos quais circulam personagens múltiplos, em seus espaços as relações humanas são marcadas por conflitos, pela diferença e distanciamento, embora se pretenda que haja interseção de afetos. A trama se concentra nas relações familiares de Júlia, Ariel e la Deo, acrescidos de outras figuras da família, ao longo da narração. O narrador, personagem da história, testemunha da vida e dos relatos dos outros, assume sua condição de estrangeiro nesse clã familiar, porém, ao mesmo tempo, é sua própria história que vai sendo construída enquanto datilografa em sua Remington, pois necessita escrever para não sucumbir.


O narrador-escritor do romance está colocado entre dois tempos, um presente em que “todos se fueron” e um passado rememorado pela escrita: “Cuando me haya cansado de contarle todo esto a la pared del cuarto, me sentaré y seguiré escribiendo, solo, sentado frente a la pesada Remington de carro largo. ¿El olor a tinta fresca, me embriagará lo suficiente como para poder encarar este maldito Hotel, en el pasado, en mi pasado?” (p. 60). Metalinguisticamente, o autor do romance escolhe como narrador de sua obra um personagem que é também um escritor, alguém que necessita, como na lição de Pamuk, transformar em palavras os olhares para dentro, por mais que doam. Na narrativa, há repetições, com a retomada inclusive de diálogos, como em uma espécie de ruminação das ocorrências. Talvez essa imagem da ruminação seja uma chave interessante de leitura da obra, se pensarmos no narrador, em seu processo de construir a história enquanto a conta, com suas idas e vindas. De um momento em um presente de sofrimento e percepção da solidão (ou de consciência da loucura, seja sua ou da companheira ou de outras pessoas), escreve sobre anos longínquos, nesse mesmo hotel em que tudo transcorre. Essa perspectiva confere ao romance uma característica de miseenabyme, há a duplicação especular, a narrativa do presente reflete a narrativa do passado, em um entrecruzamento.

Outro aspecto a destacar em El Hotel são os diálogos estabelecidos com outras artes. Há um diálogo explícito como cinema, introduzido como uma possibilidade de um estar fora do hotel (mesmo que a sala de projeção de filmes seja em um dos quartos), na interação entre o narrador e Ariel, que constroem, na trama, momentos de conversação sobre cine, como em saídas do hotel, as quais interconectam o leitor do livro com os filmes a que eles assistem e depois falam (ou não) sobre eles. Ao leitor se apresentam, dentre outros, filmes como Aguirre, a cólera de Deus, justo quando se aproxima a introdução de la Deo na história, ou Zelig, de Allen, o “camaleão humano”, cuja capacidade de relação indireta com o real nos faz refletir sobre aspectos do romance e seus personagens. A conversação ocorre não somente com o cine, a música também é um elemento importante, há referências musicais que quase podem ser escutadas. Contudo, a narrativa visual se faz mais forte, as tomadas de cenas incitam os leitores a também submergirem na trama, em cada quadro, cobrando-lhes uma capacidade de ir e vir, em suas memórias do narrado, em um processo de narrativa psicológica muito complexo.


A capacidade da literatura de dialogar com a literatura é uma marca presente, claro. Há referências diretas, com a introdução de trechos de livros, assim como no caso dos filmes, não sem motivo. As citações, para além de uma homenagem a escritores, é uma experiência de retomada de aspectos das narrativas citadas, em diálogo com a condição dos personagens, por exemplo.

O ritmo da narrativa remete a um aspecto bem presente em algumas narrativas contemporâneas, esse borrarse das fronteiras, um entrecruzamento de referências várias. A própria escolha da (s) tipografia (s) contribui para isso. Como recurso tipográfico, o projeto gráfico editorial utiliza diferentes fontes em alternância, diferenciando momentos e tempos da narrativa e/ou sensações a se destacarem. O romancista, em seu processo criativo, criou diversos diálogos constituídos por espaços em branco e sinais de pontuação, recheando de sentidos os não-ditos e deixando a cargo do leitor esse preenchimento das entrelinhas. Ainda a marcar esse ritmo diversificado, destacase a presença da fragmentação. Embora haja um fio condutor da narrativa – essa relação das pessoas nesse hotel e a maneira como se relacionam (ou não) com o que se passa fora desse espaço (e o medo de que entrem nesse espaço é algo revelador do desejo de manter-se aí, onde estão, porém, ao mesmo tempo, não há uma espécie de negação ao que vem de fora, como o próprio narrador, amalgamado ao espaço em um depois) – a trama se constrói como de diversos fragmentos de memória, por isso também as idas e vindas na narrativa. Essa fragmentação é interessante no processo criativo de narrativas contemporâneas, uma de suas marcas.


Todavia, a fragmentação vai até as últimas consequências e o leitor vêse enredado em uma trama em que “la Deo” impera como uma grande metáfora da loucura, que a princípio so mente se mostra timidamente, mas se fortalece e eclode nos capítulos finais, por fim plena, convertendonos a todos em loucos. Também, como não enlouquecer em meio a um mundo como esse em que vivemos? Somos todos loucos, a narrativa o destaca: “La loca instalada en el medio de locos […]. La loca se enfurece con los espectadores locos que no prestan atención a su historia y vociferan su propia locura como respuesta, generando una sinfonía infernal de verdades sufridas pronunciadas fuera de tono, lugar y momento” (p. 127). Toda essa condução da narrativa, dada també ma temática, em alguns momentos remete a uma experiência de leitura que se assemelha a uma espécie de divã da terapia freudiana, levando o leitor a uma reflexão sobre sua própria existência (assim como ocorre com a leitura de toda boa literatura).

O romance põe os leitores como espectadores, isso pode ser percebido ao longo da narrativa. Inclusive a trama do libro termina com um desenho de uma claquete, configurandose a narrativa como um grande filme. El Hotel é um romance denso e intenso que incomoda e nos faz pensar em nosso estar no mundo. A leitura vale a pena. Entretanto, o leitor não pode esperar por uma experiência leve de leitura.


[1] PAMUK, Omar. A maleta de meu pai. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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